quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O grou e a raposinha

Flamingo, Jardim Zoológico de Lisboa

Um dia, a raposa e o grou foram convidados para um casamento e ficaram na mesma mesa. Quando veio a comida, papas de milho, a raposa que tinha uma grande língua comeu tudo e o grou, coitado, ia bicando, mas só se ouvia o barulho do bico a bater na travessa.
O grou ficou muito triste e disse para consigo: deixa estar raposa que um dia vais ver.
Uns meses mais tarde encontrou a raposa encostada a uma árvore e com muita fome.
- O que tens raposa?
- Há dois dias que não encontro nada para comer!
- Olha, disse o grou, vai haver uma grande festa no céu, com muito comer e muita música. Se quiseres ir comigo, eu levo-te. Agarras-te às minhas penas do rabo e vamos.
Não demorou muito, estavam ambos a caminho do céu. A raposa com a boca bem fechada nas penas do grou e o grou a voar, a voar.
- Olha raposa, não ouves já a música? O que o grou queria era que a raposa abrisse a boca e caísse. Mas a raposa não abriu, para não cair.
Um pouco mais acima, o grou disse: ai que cheirinho a comida. Não te cheira raposa?
Nãoooooooooooooo. A raposa esquecera-se, abriu a boca para dizer não e veio por aí abaixo.
Mas a raposa, que era muita boa, teve uma ajuda. Caiu numa carroça, em cima da palha.
....
Esta é a primeira parte da história da raposa que me contaram quando eu era pequenino e que te contei a ti. Mas como quem conta um conto, acrescenta um ponto, se tivesse de a contar outra vez, dir-te ia que não ouve casamento nenhum, nem vingança. Para mim, a raposinha foi deitada violentamente ao chão porque o grou já estava velho e não devia de voar. Ou então, voava baixinho que, assim, a queda nunca seria grande.


terça-feira, 30 de agosto de 2011

Monólogos

Obrigado por ontem me levares a descobrir a Obra Poética de Mário de Sá-Carneiro.
E, precisamente hoje, uma semana após este pesadelo, me teres mostrado a contracapa, com uma frase de esperança de Fernando Pessoa, que te recordo:
«Morrem jovens os que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga.»
Eu mostro-lhes, mas tens de os tocar com a tua mão, porque esta ferida está em carne viva.

domingo, 28 de agosto de 2011

O graffiti

Graffiti numa parede de Alfama
Ao contemplar o graffiti fiquei na dúvida.
Seria a morte, porque ela tem um aspecto funesto e deixa atrás de si sangue de inocentes?
Seria o instrumento da morte, porque a figura tem o aspecto de mandatário?
Ou seria Deus, incomodado por poderem dizer que teria sido um pai ausente?

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Carocha

Fechei um pouco os olhos. Um pouquinho só. O suficiente para sentir de novo as tuas mãos pequeninas. Como naquela vez em que fomos às folhas de amoreiras para os bichos da seda, que afinal eram folhas de outra árvore e mataram os bichos. Sou mesmo troll.
Eu sei que é egoísmo. Toda esta dor de alma não pode ser pelo que perdeste, porque estás bem. É pelo que eu perdi, eu sei.
Tu eras o teu pai em pequenino, o meu outro filho como diz a Joana. E repara como a Mamã é parecida com a Joana. Passam as duas por minhas filhas.
Mas tu também me dizias que eu era bonito, que eu não era gordo. Só tinha uma barriguinha um bocadinho grande, parecida com a do teu papá. E para me agradares dizias que te chamavas Mariana Batista Madeira Carocha, porque eu te chamava Carocha.
Amanhã, às 17 horas vou despedir-me do corpinho que há dois dias abandonaste. Mas não me despeço de ti. Vais ver a surpresa que estou a pensar. Depois poderei continuar as histórias da raposa, do grou, do lobo, do homem das botas.
Muitos beijinhos minha Carocha.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Adeus querida Mariana

Foto da Mariana tirada em Alcanhões em 30/07/2011
«Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.»
Luís de Camões

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Os perseguidos

Os Perseguidos (1969) - Escultura de Pedro Anjos Teixeira exposta em Sintra
Quem ouvisse, como eu ouvi, a ansiedade que transparecia daquele diálogo, imaginaria um amor enorme, um amor proibido.
E, quando o comboio parou na estação de Alhandra e ela saiu, desligando o telemóvel, antevi dois corpos sedentos de amor, nus, fugidos, clandestinos, perseguidos.

O amor de Saramago e Pilar

Lisboa, Campo das Cebolas - Saramago e Pilar
Com o tempo, a pintura mural vai desaparecendo. Contudo, o amor que uniu Pilar a Saramago será lembrado por muitas gerações.
Os amores que o novo-rico tem, aquele que olha com desdém e um pouco de ódio para a pintura, desses amores ninguém se lembrará.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Mulher

Olhou para a escultura de Linda de Sousa, uma mulher em ferro, agrilhoada.
Vestiu a escultura com a blusa cor-de-rosa de que tanto gosta, a saia branca que a fazia feliz.
E sentiu-se, também, sem se poder mover. Presa a tantos preconceitos. Presa a uma vida sem sentido.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Miséria

Era já noite cerrada,
Diz o filho: "Oh minha mãe,
Debaixo d'aquella arcada
Passava-se a noite bem!"

João de Deus, Miséria

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Fugitivo

Era já noite escura.
Num saco de plástico metera as poucas coisas que possuía.
E caminhou, caminhou sem destino, fugindo de todos e de si próprio.

domingo, 14 de agosto de 2011

O malhado

O malhado vai à fonte, que de manhã é que se mata a sede da noite.
Eu fui ao café comunitário de Rio de Onor. Que a noite trouxe saudades da bica.
Cruzámos olhares e cada um seguiu o seu caminho.
Fiquei a pensar nos velhos filmes de índios e cowboys.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

O carrasco

Caros Cidadãos
Venho anunciar-vos mais um corte na despesa.
Desta vez, para não variar, na despesa dos mesmos.
Assim, a partir de agora, se o vosso dinheiro não chegava para as despesas até ao dia 20 de cada mês, depois de mais este corte, não chegará a 15! Os que não aguentarem que se vão chegando à frente.
Prometemos, cumprimos! Estamos a cortar nas despesas!
(Discurso imaginado ao contemplar este pormenor da escultura de Santo António, junto à Igreja de Santo António em Lisboa)

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A inocência do nobre Marcelo

E o que acha o meu Senhor Marcelo sobre o novo imposto extraordinário que o rei lançou?
Hermengarda, Senhora minha, penso que o rei está a ir longe de mais. Não compreendo porque sobrecarrega tantos os servos e deixa os senhores acumular fortunas. Não compreendo porque não tributa os senhores.
Qualquer dia os servos ainda se revoltam.

sábado, 6 de agosto de 2011

A inocência do Manel

Ó Manel, há uma coisa que eu não percebo.
Quando trabalhávamos, todos nos metiam a unha. Era a água, era a electricidade, era o gás, eram os bancos, eram os impostos. Eu sei lá. Sei que acabámos por vir morar para esta barraca.
Ó Maria, a coisa agora vai mudar.
Vê lá que até os bancos vão arrendar a preços baratos as casas dos que tiveram de as entregar (como nós) porque o dinheiro já não chegava para a amortização.
Ó Manel, então vamos deixar a barraca?
Ó Maria, não tenhas dúvidas!

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Gaivota na praia

Hoje que decidi vir à praia não tenho espaço para deitar a toalha.

O espião tem razão

Eu não sou um menino de coro, foi assim que o J, destacado ex-dirigente das secretas da república, reagiu à notícias de que tinha municiado uma empresa privada de informações. Por simples acaso, um mês depois sai das secretas e torna-se assessor do Presidente da tal empresa privada.
Tem razão o J.
Se a promiscuidade entre o poder político e o poder económico são uma constante no quotidiano desta quinta a caminhar para o abismo, seria mesmo ser menino de coro não aproveitar o cargo.
E o J poderia citar o JC, o DL, o AV, o MA. Não parar de citar. O meu espaço é demasiado pequeno.
Pequeno também eu sou e pequeno é o som da minha garganta.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Pesadelos

Ando com visões.
Olho-me ao espelho e não me vejo.
Aparecendo sob uma cortina de fogo, vejo o diabo em figura de gente, impulsionando o meu egoísmo. O mundo és tu, grita ele aos meus ouvidos.
Não vês aqueles que passaram ao lado da fila e não perderam tempo? E aqueles que fogem aos impostos e são felizes? E olha aqueles que passaram pelos pedintes e ainda se riram. E aqueles que recebem bons lugares pelos favores que fazem. E aqueles ali, acolá, mais além.
Acordei. Tinha sonhado com os caretos que fotografara em Bragança.

Blimunda

«Nove anos procurou Blimunda. Começou por contar as estações, depois perdeu-lhes o sentido. Nos primeiros tempos calculava as léguas que andava por dia, quatro, cinco, às vezes seis, mas depois confundiram-se-lhe os números, não tardou que o espaço e o tempo deixassem de ter significado, tudo se media em manhã, tarde, noite, chuva, soalheira, granizo, névoa e nevoeiro, caminho bom, caminho mau, encosta de subir, encosta de descer, planície, montanha, praia do mar, ribeira de rios, e rostos, milhares e milhares de rostos, rostos sem número que os dissesse, quantas
vezes mais os que em Mafra se tinham juntado, e de entre os rostos, os das mulheres para as perguntas, os dos homens para ver se neles estava a resposta...»

Ficava ali na Azinhaga, mais um pouco, a ouvir Saramago contar as histórias do povo. A odisseia de Blimunda, em busca do amor que perdera há nove anos e que veio a encontrar, demasiado tarde, nas fogueiras da inquisição, deixou-me triste. Quem faria tamanho sacrifício por mim? Deixei Saramago e parti.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A melhor casta

Ao passar por Alpiarça, dei comigo a contemplar esta escultura de Armando Ferreira.
Espreguiçando-se para um novo dia, no dizer do escultor, o nu representando nesta alegoria ao vinho todas as mulheres, também é uma bandeira à conquista da sua própria liberdade, à sua beleza e ao seu encantamento vinhateiro por excelência agitado e maravilhoso.
Dedicado a um meu amigo poeta, grande apreciador do néctar das melhor castas.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Adios rios, adios fuentes

Fragmento de um lindo poema de Rosália de Castro (Cantares Galegos) cantado pela maravilhosa voz de Amancio Prada, para recordar meu pai que um dia, pelos seus 18 anos, abandonou a aldeia de Corgas e o Rio Alva em Sandomil, para não mais tornar.
«Adiós, ríos; adios, fontes;
adios, regatos pequenos;
adios, vista dos meus ollos:
non sei cando nos veremos.
 
Miña terra, miña terra,
terra donde me eu criei,
hortiña que quero tanto,
figueiriñas que prantei.»
 
 Amancio Prada - Adios rios, adios fontes